“Com o lema: pensar o impensável, fazer o impossível, Rosa semeava afeto, amor, solidariedade, sonhos emancipatórios, libertários, abrindo horizontes em terra árida, nessa sociedade de barbárie”
Para celebrar a vida ou marcar a passagem de alguém para o outro lado do arco-íris, recorremos às flores, às rosas.
E quando alguém é a própria Rosa, o jardim está completo, intensamente perfumado. Intensidade, aliás, foi uma palavra que marcou a vida de Rosa Maria Ferreira da Fonsêca, que viveu para semear sonhos coletivos. Ela partiu nesta quarta-feira, 01 de junho, deixando um exemplo de ativismo como pouquíssimos seres humanos.
Ainda adolescente militou no movimento estudantil, passando pelo ativismo na política, sindicatos e centrais sindicais, além de movimentos populares e organizações clandestinas, no tempo da ditadura militar. Sempre pautada no outro, no coletivo. Rosinha ora estava numa marcha contra a carestia, ora enfrentando a polícia em ocupações por direito à moradia, e ainda na agenda, reunião para tirar algum “pelego” de determinado sindicato e confabulações políticas para transformar o Brasil e o mundo. O movimento de mulheres teve nela uma liderança de referência com a criação da UMC (União das Mulheres Cearenses) e os protestos e denúncias que advieram com essa nova frente.
Incansável, corajosa como poucos e poucas, generosa e afetuosa, Rosa era respeitada e querida mesmo pelos adversários do campo popular de esquerda por sua garra e compromisso com os mais pobres, com os que tinham fome e sede de justiça.
Duas historinhas dizem bem quem foi Rosa:
Quando estudante universitária de Ciências Sociais, participou, em plena ditadura militar, de um debate sobre educação na TV Verdes Mares, com transmissão ao vivo para todo o Nordeste, e a participação do então Ministro da Educação, Jarbas Passarinho. Após fazer uma longa explanação sobre as iniciativas do governo para a educação, o ministro deu em seguida a palavra para a representante estudantil. Rosa começou dizendo que não se sentia representante dos estudantes. O ministro estranhou, e percebeu que havia algo fora do script. “Nossos representantes, muitos estão presos, estão perseguidos. Alguns tiveram de entrar na clandestinidade, nossos centros acadêmicos foram fechados.” E nessa pisada de confronto aconteceu o programa. Dois meses depois, Rosa era presa e torturada nos porões da ditadura militar. Ficou dois anos encarcerada.
Anos depois, em 1992, teve a sua única experiência na política com mandato eletivo – de vereadora de Fortaleza. No dia da posse dos parlamentares eleitos, a cerimônia foi interrompida com a fala do líder comunitário José Maria Tabosa. Ele gritava que a polícia ameaçava de despejo uma comunidade do bairro Pirambu: “enquanto vocês estão aí, o povo está lá, apanhando.” Rosa viu que o Secretário Municipal do Trabalho e Ação Social, Júlio Ventura, tinha acabado de chegar à solenidade. Ela o abordou, dizendo: “não tenho condição de ficar numa solenidade dessas sabendo que o pessoal está todo apanhando lá da polícia. O jeito é o senhor ir lá comigo”. Chegando lá, Ventura usou a autoridade de secretário e conseguiu suspender a desocupação. Na sequência aconteceram negociações e terminou que a comunidade não foi despejada. Devido ao episódio, Rosa não apareceu na foto oficial do início da legislatura.
Vivendo cada dia para fazer a revolução que sonhava, Rosa e o grupo político ao qual pertencia, depois de muitos enfrentamentos e avaliações sócio-políticas, chegaram à conclusão de que o sistema capitalista clássico estava exaurido e de que a luta de classes não levaria à ruptura com o capitalismo. “Patrões e empregados estão lutando pela mesma coisa, na mesma lógica: pelo dinheiro. Portanto, para manter o sistema”, questionou Rosa ao jornalista Érico Firmo, no livro Rosa da Fonsêca, da Coleção Terra Bárbara, Edições Demócrito Rocha, publicado em 2017.
Veio então uma nova fase, de rompimento com a política tradicional, acompanhada de campanha para as pessoas não participarem de eleições. Se afastaram também dos sindicatos. Isso resultou no desligamento de muitos aliados, especialmente do movimento sindical. Mas o agora denominado Crítica Radical estava disposto a dar asas a experiências e análises que rompessem com a lógica do sistema vigente. Rosa e sua companheira de grupo, Maria Luiza Fontenele, que tinha sido a primeira mulher prefeita de capital no Brasil, pelo PT, foram muito criticadas por isso, e alguns diziam que estavam favorecendo à direita com esse discurso.
O grupo recebeu grande influência do filósofo alemão Robert Kurz, autor do livro O Colapso da Modernização, que esteve em Fortaleza, num seminário promovido pelo movimento. Com isso, percebem que o valor, a partir da mercadoria, cai drasticamente com a revolução da microeletrônica e a consequente queda dos postos de trabalho. O grupo avalia, então, que está havendo a eliminação do trabalho como substância do capital.
NOVOS RUMOS, ENCONTRO COM NAÇÃO PACHAMAMA
Na nova e atual fase, o Crítica Radical tem levado a bandeira da emancipação humana e ambiental. O grupo teve papel ativo no acampamento e manifestações contra a derrubada de árvores do Parque do Cocó para construção de um viaduto, em 2013. Foi ali que eu, Zulema, que já frequentava o parque como gateira (muitos gatos eram abandonados no parque) reencontrei a Rosa. A Marília já conhecia bem a Rosa dos tempos da ditadura. Aquela nova Rosa, sempre revolucionária e cheia de ganas pra mudar o mundo, continuava firme com seus sonhos.
No ano seguinte, conseguiram, mediante campanha, comprar um sítio e ali tentar colocar em prática a ideia de emancipação em relação ao sistema, a busca de caminhos para construir a autonomia da pequena comunidade. Rosa se mudou pra lá.
A ponte para chegar ao sítio veio através de um aspirante da Nación Pachamama que frequentava o Brotando Emancipação e contribuía com seus conhecimentos de permacultura. Fizemos algumas visitas ao local. Chegamos a dormir lá e participar de um mutirão de colheita de arroz e de uma lua cheia em volta da fogueira. Em outro momento, Rosa e alguns participantes do grupo chegaram a passar um dia em uma de nossas comunidades campesinas espirituais no Ceará, em um dia de troca de ideias e afetos.
O grupo assinou, em 2017, junto a mais 30 entidades e movimentos, a carta-manifesto Nós Somos o Rio, em defesa do Rio Cocó, durante a movida nacional promovida pela Nación Pachamama – 1ª Pororoca da Nação das Águas, para que os rios vivam. Chegaram a produzir uma mensagem em nome do Crítica Radical, voltada para o evento.
Com certeza ainda teríamos muito a trocar e compartilhar com ela pelo sonho comum, mesmo que por caminhos diferentes, de ver a humanidade e toda a Pachamama livres e podendo viver como são, em amor luminoso e fraternidade.
O sonho não acabou Ma-Rosa! (uma das formas como era carinhosamente chamada pelas pessoas mais íntimas)
“Rosa voa alto, permeia no planeta, nas galáxias, no universo, nos espaços desconhecidos, a liberar e semear energias que toquem corações e mentes para a caminhada da emancipação humana! ROSA VIVE!”
Com profunda admiração e saudade, e uma rosa que sai do coração,
Zulema M.
Fonte de pesquisa: livro Rosa da Fonsêca, das Edições Democrito Rocha, e mensagem da família entregue no velório e escrita por sua irmã Cristina Fonseca.